O sistema de justiça deve reunir três requisitos essenciais: ser acessível, rápida e justa.

26-10-2011 15:41

 

 

DEBATE SOBRE O ESTADO DA JUSTIÇA

 

 

Hoje quase todos estarão de acordo com o facto de o MpD ter condicionado a aprovação do pacote legislativo sobre a justiça à necessidade de uma revisão constitucional. Na ocasião, muitos não terão compreendido as razões subjacentes a tal posição, mas ficou seguramente demonstrado que se impunha uma alteração do desenho constitucional do sistema de administração da justiça, que assentasse em alguns eixos fundamentais: o reforço da independência da magistratura face aos poderes públicos, a autonomia na administração de todos os recursos disponíveis, a separação clara entre os subsistemas de gestão de recursos e o de prolação de decisões judiciais e a afirmação da indispensabilidade de certas categorias de tribunais, tais como o tribunal constitucional e os tribunais de 2ª instância.

 

Algumas inovações podem ser consideradas ousadia, mas em face da magnitude dos nossos problemas, como povo, sempre soubemos ousar, e quando ousámos com conhecimento de causa, vencemos sempre. Efetivamente, a Constituição de 1992 é prenhe de ousadias, tendo-se adiantado no tempo a vários outros sistemas que habitualmente nos tem servido de paradigma. Assim, aconteceu, por exemplo, com o voto, nas eleições presidenciais, de cabo-verdianos residentes no estrangeiro, e com o voto, nas eleições autárquicas, de estrangeiros residentes em Cabo Verde. Profundas reformas foram levadas a cabo no país e no início elas assustaram muita gente, algumas vezes profetizando-se desgraças, mas na sua esmagadora maioria elas produziram os resultados projetados!

 

Estamos convencidos que as alterações introduzidas em sede constitucional, bem como o pacote legislativo que lhes deu sequência, trarão resultados muito positivos para o sistema de administração de justiça. Na verdade, o MpD empenhou-se profundamente nessas alterações e como partido político da área do poder, co-responsabiliza-se nas soluções encontradas, sem qualquer hesitação ou ambiguidade.

 

Mas deve fazer um alerta: o pacote legislativo é necessário, mas não é suficiente. Falta ainda um caminho longo a percorrer. Existem duas tentações que devem ser afastadas, uma a de um discurso político ligeiro, de desresponsabilização, dizendo-se que hoje a administração da justiça é um problema dos procuradores e dos tribunais e que o poder político nada tem a ver com isso. Outra, a de os magistrados não assumirem integral e descomplexadamente os poderes que lhes estão confiados, não ousando apoderar-se dos instrumentos de autoridade até à linha da fronteira que separa o poder judicial dos restantes poderes, responsabilizando indevidamente o Parlamento e o governo por problemas que as magistraturas têm a obrigação constitucional e legal de resolver.

 

A César o que é de César e a Deus o que é de Deus!

 

Cabe hoje às magistraturas fazer uma gestão eficiente dos recursos disponíveis, aumentar significativamente a produtividade do sistema e responsabilizar os operadores judiciários pelo incumprimento dos seus deveres. E registam-se suficientes disparidades no sistema para se poder facilmente concluir que existem problemas que cabe às magistraturas resolver. Na verdade, não faz muito sentido a existência de procuradorias, de juízos e de tribunais com diferenças acentuadas de número de «processos resolvidos», umas vezes de dobro e até de triplo. Portanto, mais e melhor inspeção, mais responsabilização e melhor gestão dos recursos.

 

Mas o poder político detém também uma grande responsabilidade na eficiência e eficácia do sistema de administração de justiça, particularmente a dois níveis: a produção legislativa consentânea com as necessidades do país e a alocação de recursos compatíveis com os graus de exigência dos nossos tempos.

 

No domínio da produção legislativa deve-se reconhecer o esforço que se tem vindo a fazer, procurando-se a simplificação de procedimentos e da redução de custos. Mas estamos em crer que se pode fazer mais e melhor. Efetivamente, continuamos a registar graves lacunas na justiça administrativa, custos ostensivamente insuportáveis na justiça fiscal, incongruências significativas, e às vezes quase burlescas, nas custas judiciais e muitos constrangimentos no acesso, por dificuldades de encargos com os honorários de advogado e com as deslocações e estadia, etc. Estamos ainda longe do acesso universal, pois se é verdade que foram encurtadas de forma significativa as distâncias físicas, o financiamento da assistência judiciária continua a estar muito aquém do necessário, com manifestos prejuízos para as franjas mais desfavorecidas da população cabo-verdiana.  

 

No domínio da alocação de recursos, não se pode desconhecer, é certo, a pobreza do país, não obstante a basofaria sobre a circunstância de sermos um país de rendimento médio.

 

Aqui o relatório diz-nos de uma forma muito clara, não obstante as infraestruturas físicas executadas, que os recursos disponíveis são manifestamente insuficientes. Este é um dado incontornável! No quadro atual de alocação de recursos não há gestão eficiente que possa ser feita pelas magistraturas para contornarsignificativamente o problema da morosidade.

 

Temos em Cabo Verde um nível de litigiosidade elevado, com um crescimento significativo da demanda judiciária, pois passámos, em matéria cível, de 6.229 processos entrados nos Tribunais em 2005 para 9.518 em 2010, ou seja, um acréscimo superior a 50%, em apenas 5 anos. No Ministério Público, podemos verificar que entre 2005 e 2010 existe um acréscimo de processos entrados superior a 100%, situando-nos agora em 18.497 processos crime. Existem 13.784 processos cíveis pendentes, naturalmente nos Tribunais, e 41.743 processos crime pendentes no Ministério Público. A taxa de resolução (encerramento de instrução) dos processos crime no Ministério Público situa-se abaixo dos 50%. Na Praia, onde o sentimento de insegurança e de ineficiência do sistema mais se faz sentir, a taxa de resolução é de cerca de 36%, ficando por resolver cerca de 64% dos processos entrados.  Em S. Vicente, também com um sentimento muito significativo de insegurança e impunidade, a taxa de resolução dos processos crime no Ministério Público é de 53%, o que significa que de 3758 processos entrados apenas 2013 são resolvidos nesta instância.  Em Santa Catarina a taxa de resolução é de cerca de 50%, pelo que dos 1219 processos entrados, foram resolvidos apenas 622.

 

Assim, passámos de uma pendência no Ministério Público de cerca de 14.000 processos crime em 2005 para 41.743, ou seja, um acréscimo de pendência de quase 300% em 5 anos.

 

E, tendo em conta os processos cíveis, temos 55.527 processos pendentes, pelo que, para cada 100 habitantes, cerca de 12 têm um processo pendente no Ministério Público/tribunais. Estas estatísticas nem levam em conta os processos nas esquadras policiais.

 

Na Praia, com todos os arquivamentos por prescrição já efectuados, ainda estão à espera de decisão definitiva quase 18.000 processos criminais. Em S. Vicente, cerca de 11.000 processos criminais. 

 

Estão cerca de 5.000 processos cíveis pendentes na Praia, 2.100 em S. Filipe, 1.800 em S. Vicente e 1200 em Santa Catarina.

 

Do ponto de vista da justiça criminal a situação é muito má, como, aliás, reconhece a Procuradoria Geral da República, assumindo que na Praia, por exemplo, para além da intervenção nos processos sumário e na validação da detenção, os Juízos Criminais têm quase que limitado a sua intervenção nos processos com arguidos em regime de prisão preventiva. Isto significa o quê? Significa que uma vasta categoria de crimes de média e baixa gravidade é praticada quase  impunemente! É a impunidade pela falta de capacidade de resposta do sistema, não obstante, repito, o mecanismo artificial de resolução de processos por efeito da prescrição!

 

Quando se percebe que existe muito claramente um problema sério na prevenção do crime, pela existência de vários factores, mas também da ineficiência policial, por falta de equipamentos, de tecnologias, de formação e de disponibilidade combativa; quando existe um problema sério de repressão da criminalidade média e baixa, pelas mesmas razões; e existe ainda um problema adicional, que é a falta de capacidade para instruir processos crime em tempo razoável e julgar os arguidos pelos seus alegados atos praticados, condenando ou absolvendo, conforme for de lei; quando, pelo contrário, uma grande parte dos despachos dos magistrados começa a ser de prescrição de procedimentos criminais, então o problema começa a ser grave e deve ser atacado com outras políticas e um grau muito superior de mobilização e disponibilização de recursos.

 

Se estamos convencidos que se pode otimizar o aproveitamento dos recursos disponibilizados ao sistema, a verdade é que estes, como dizia há pouco, são claramente insuficientes. Temos 47 juízes e 37 procuradores. E se existem tribunais com problemas de produtividade, a verdade é que também registamos Tribunais com uma capacidade de resolução superior a 1 processo por cada dia de trabalho útil, o que é muito bom!

 

Na verdade, pode-se facilmente concluir que o número de magistrados, particularmente os do Ministério Público, estão aquém das necessidades do país. Para além das insuficiências nas grandes comarcas, que exigem o reforço de números de magistrados e de oficiais de justiça, é preocupante a situação de outras comarcas mais pequenas, tais como a do Sal, como 2321 processos criminais pendentes no Ministério Público, Maio com 912 e Boavista com 718 e Porto Novo com 920.

 

A capacidade de detecção do crime e do exercício da cidadania na busca da proteção judiciária do Estado podem ficar seriamente prejudicadas se não houver condições, à jusante, para a resolução definitiva das causas, absolvendo ou condenando, em conformidade com a responsabilidade apurada. É que, nesta matéria, como é sabido, a incapacidade à jusante, aumenta os problemas a montante, pois que facilmente é feita a leitura da permissividade do sistema, pelo que bem vale o risco do cometimento da infração!

 

Perpassa também pela nossa sociedade, senhor Presidente da Assembleia Nacional e caros deputados, um sentimento de impunidade para certas categorias de crimes ou para certas categorias de agente. Não existe ainda, infelizmente, uma cultura de suficiente distanciamento do poder executivo na investigação criminal. São raríssimos os casos de simples «averiguações», ao menos para se certificar da existência de indícios de crime. O que é relatado pela comunicação social e que envolve a esfera do poder parece perturbar as autoridades policiais e até o Ministério Público, e, por meio de uma auto-censura como meio de defesa perante uma presuntiva iminência de reação «sancionatória», a omissão, o faz de conta que não leu, não viu e nem sequer ouviu, prevalece, o que é mau para a credibilização do sistema. Para os próprios indiciados será sempre melhor a averiguação rápida que os inocente, do que a omissão quase criminosa que eternize a suspeita. Se é verdade que há quem levianamente acusa, porque sabe que não haverá verificação atempada da veracidade da imputação, outros há que se aproveitam desta inação das autoridades para impunemente fazerem tudo o que lhes der na real gana, como senhores absolutos do reino!

 

 

Como pode um trabalhador da Ilha da Brava, Maio ou Tarrafal de Santiago, com os seus parcos recursos, contratar um advogado da sua escolha para lhe defender porque se sente injustiçado pelo Estado, pelo Município ou por um seu conterrâneo? Essa é uma questão que compete ao pode político resolver, disponibilizando recursos!

 

Como permitir que uma pessoa que é injuriada na sua honra, usurpada ilicitamente do seu património, despedida injustamente do seu posto trabalho ou pretenda cobrar o seu crédito legítimo, esteja anos à espera da resolução do seu caso? Este é um problema que cabe ao poder político resolver, com leis simplificadas  e com disponibilização de recursos materiais e financeiros ao sistema de justiça; mas também cabe aos magistrados e aos oficiais de justiça, com empenho profissional, produtividade e sentido de responsabilidade.

 

Como oferecer boas soluções, soluções justas para as pessoas e empresas? Problema que compete ao poder político resolver com boas leis e aos magistrados, com decisões conformes ao direito.

 

Essas questões simples, suscitam medidas complexas, bem o sabemos! No quadro das nossas responsabilidades como oposição, e nos limites que nos estão consentidos pela Constituição, os cabo-verdianos podem contar com a nossa contribuição para ajudar na discussão e aprovação de boas leis e na atitude sempre vigilante por ocasião de alocução de recursos ao sector, exigindo o que se mostrar compatível com os recursos do país e as necessidades de um bom sistema de administração de justiça.